quinta-feira, 30 de abril de 2009

Aqui a gente espia longe

Ao descer do microônibus, empoeirado pela viagem Pantanal adentro, toda descabelada e diante da comunidade tão simples de nome São Pedro de Joselândia, distrito de Barão de Melgaço, interior de Mato Grosso, sem traços de tecnologia ou vestígios urbanos, fiquei a pensar: “nossa, eu jamais conseguiria morar aqui. O que eu iria fazer? Uma jornalista plugada na internet”. Um minúscula localidade, com algumas dezenas de casas simples e pequenas, giraus (quintais cobertos com pedaços de madeira), galinhas, cachorros e porcos por todos os lados, uma igreja simpática e um galpão que servia de associação dos moradores, ao meio de um descampado. A vida social acontecia ali, os batizados, casamentos, aniversários, festas de santos. Eis que interrompendo minha reflexão, surge seo Joaquim:
- Filha, de onde você vem?, perguntou ele, apesar de simples, muito bem arrumado com seu chapéu branco, camisa branca de botão e de mangas curtas, calça de tergal bege, abotoada (é que os mais velhos não se adaptaram com o revolucionário zíper), chinelos de couro.
- Eu vim de Cuiabá, respondi
Ele ficou a pensar e me indagou sorridente e preocupado:
- Como você consegue morar naquele lugar, cheio de prédios, construções, sem vista. Aqui em São Pedro de Joselândia, a gente espia looooonge..., e apontou o horizonte. Percebi que meu olhar se perdia na imensidão.
Sorri e começamos a conversar: nós dois, cada um com sua incredulidade diante da escolha pra morar do outro. Naquele lugar, características tão peculiares como a devoção a São Pedro, a simplicidade dos hábitos rurais, por meio da agricultura de subsistência e a lida no campo. Pessoas que possuem o cururu e o siriri como símbolo, formas de manifestações folclóricas que lhe permitem visitar outros universos, falar de amor, de lendas, de ensinamentos, perpetuando as gerações. Ali, a maioria de seus moradores já ensaiaram passos de siriri, participaram de roda, tocaram viola-de-cocho.
Seo Joaquim contou dos tempos da mocidade, em que entoava o cururu e dedilhava a viola-de-cocho com composições próprias, que segundo ele, encantavam as moças da região. Ao perder o companheiro, deixou de se apresentar com o cururu. Manteve a elegância dos Cururueiros, eles são assim: elegantes, sempre com chapéus, camisas impecáveis, calças de tecido e de botão!
Fiquei ali ouvindo aquele senhor, no alto de seus 93 anos, me questionar qual seria a última vez que eu olhara para o horizonte e pensara na vida, além da tela do computador, nada de viagem por universos de outros, mas para o meu universo interior; nada de diminuir distâncias por meio da internet ou pelo fio de telefone ou até mesmo sinais de celular, mas diminuir distância com pensamentos, transformá-los em poesias, colocar no papel pelo próprio punho e pelo correio, “mandar avisar minha filha”. Esperar até uma semana pra chegar e depois mais uma semana, com muita sorte, para receber a resposta. Ele queria respostas que continham em suas entrelinhas a experimentação de todos os sentidos. “Lembra quando recebia cartas? Tocava o papel pensando que ali tinha o toque de quem enviara, as dobras guardavam cheiros, o leve amassado da folha rabiscada, ali começava o recado”, provocou seo Joaquim.
Percebi que realmente ficara tanto tempo diante do computador que tinha esquecido como era “espiar longe, escuitar”, enviar pensamentos. Vivia me esquivando da intuição, deixara ela pra lá.
Na volta pra casa, fiquei observando o horizonte pantaneiro, rasantes das garças, adivinhando os desenhos das nuvens, rindo dos filhotes de jacarés imóveis.
Percebi que mesmo na cidade, podemos fitar o contorno do por do sol, apesar dos prédios. Cuiabá guarda sinais de urbanidade e conserva rastros bucólicos. A visita a São Pedro de Joselândia me fez pensar: ainda temos espaços em que nossos olhos se perdem, e nesses lugares “espiamos longe e escuitamos o vento!!". Quando espiamos longe, voltamos pra nós, quando nosso olhar se perde no horizonte, nos encontramos.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Uma Rosa que morreu de amor

Logo cedo, Rosa passava pelo meu portão, sorridente e muito alegre cumprimentando quem por ela passava Vovó , uma autêntica cuiabana, chegava até a dizer: Essa Rosa, é tão feliz que dá até bom dia a cachorro!. Vovó tinha razão, Rosa era querida pela vizinhança, tinha sempre uma palavra de carinho. Todos os dias, eu a ouvia dizer: “Olá boneca, como vai? Tudo bem? “Cara” de sua mãe....”
Rosa fazia parte do meu cotidiano, desde que “eu me entendera por gente”. Morena, cabelos longos pretos, magra, com camiseta de cores fortes e calça jeans. Lá ia e vinha ela, com seu sorriso, muitas vezes carregando uma sacola de pães ou livros.
Eis que um dia, Rosa não apareceu pela rua. No outro dia também não. Algo teria acontecido com Rosa. O que seria? Morávamos no mesmo bairro. Vovó, sempre informada dos acontecimentos da vizinhança, viera me contar que Rosa estava no hospital. A notícia me surpreendeu e naquele dia eu descobri que por trás daquele sorriso, daquele ir e vir, estava uma mulher muito triste, que escondia em seu olhar, uma dolorida história de amor.
Rosa se apaixonou perdidamente por um homem, com o qual viera a se casar. Professora, Rosa se dedicava ao lar e aos alunos, e levava a sua vida com dignidade. Seu marido, por sua vez, vivia casos fortuitos de amor, que Rosa ignorava e fazia vistas grossas. Até que um dia, seu marido decidira partir. Rosa permitiu que ele fosse, o respeitava tanto que não lhe causara qualquer aborrecimento, mas guardava a esperança de reatar o casamento. Para distrair e amenizar seu sofrimento, Rosa mergulhava suas angústias em copos de pinga, trancada sozinha em sua humilde casa, que ela conseguira após ganhar um dinheirinho no Baú da Felicidade. As paredes de sua casa guardavam o segredo de Rosa: a dor da solidão.
O ex- marido de Rosa se envolveu com uma mulher casada e numa tarde de sábado, fora assassinado no estacionamento do shopping pelo esposo de sua amante. O caso foi parar nos noticiários e Rosa, ah a Rosa, deixou de beber. A dor era tanta que nem mais a bebida amenizava o seu sentimento da perda. Desta vez, sua esperança teria se esvaído, perdida no vento, no tempo. Ele não estava mais ali, não poderia mais reviver seu casamento, sua história. Apesar da distância física, a possibilidade da volta alimentava Rosa, sua vida tinha sentido nos copos vazios, nas peças das roupas esquecidas no fundo armário. Um dia, acreditava Rosa, ele haveria de voltar.
Rosa entristeceu, adoeceu e entrou em coma. Não reagiu mais. E numa tarde de outono, Rosa partira. E a rua ficou sem o sorriso daquela mulher que escondera de todos um sentimento profundo. O bairro ficou sem sua Rosa, que morreu de amor.